domingo, 7 de julho de 2024

Lealdade

 

A lealdade, por definição, é — ou deveria ser — uma condição tipicamente humana. Seria a capacidade de pactuar um compromisso sincero e constante, baseado em fidelidade, confiança e respeito de parte a parte. Lealdade é estar ao lado de quem se deposita confiança. É ser capaz de defender esse alguém visando aos seus interesses, seus valores, mesmo em tempos de adversidade. No que respeita à humanidade, essa condição, embora exista na realidade, mostra-se muito frequentemente bem mais como idealidade. Todavia, no que respeita aos cães, desconheço exemplo mais eloquente de lealdade. Que o diga quem já conviveu com uns e outros.

sábado, 6 de julho de 2024

Melo: nada como uma cama bem quentinha!

 Crédito das imagens: Tia Celina

O Cão e o Galo

Então, foi em 2020. Tempos de pandemia. Andando pelo interior do estado, uma parada na estrada. Era uma fruteira muito simples, que comercializava produtos coloniais também. Como não me interessava comprar coisa alguma, andando por ali, eis que me deparo com uma dupla inusitada: um velho cão castanho, grande, lento, gordo, talvez reumático, mas observador. Ao lado do velho cão, desfilava um belo galo de linda plumagem, crista vermelha, altivo, valente, que agia como verdadeiro dono do lugar. Serenamente ambos me olhavam. Depois, notei que observavam também os forasteiros que, por ali, só queriam saber das compras. Uma gente meio confusa, barulhenta, que mal descia dos carros, começava a andar para lá e para cá. Gostei de observar a dupla que até fotografei. O cão, muito lento, olhava-me com ar cansado, enquanto o galo se exibia, ora ciscando, ora batendo as asas. Gostei mais do estilo do velho cão, que caminhava muito devagar perto de uma típica casinha de cachorro, muito velha e descuidada que, presumo, fosse dele.  Já o galo, este, exibia-se, alçava a crista, batia as asas. Parecia buscar aplausos, sabendo-se bonito. Certo de que era um Pavarotti, abria o bico, mostrava a língua e cantava, alongando as notas até a rouquidão. O cão, silencioso, limitava-se a olhar e a escutar seu parceiro. Passei alguns minutos observando os dois. Subitamente, porém, o galo desafinou. Foi um fiasco. A longa nota estridente soou em falso, escandalosamente desafinada. Eu sorri. E acreditem, no mesmo instante, pude ler, no semblante sereno do cão, um leve arquear de sobrancelhas. Eu poderia jurar que trocamos olhares, discretamente, sorrindo da malograda performance do outro. Instante mágico, como mágica seria a cumplicidade que minha imaginação teima em afirmar que existiu exatamente naquele instante entre mim e cão. O galo? Ah! O galo continuou a ciscar e a cantar, exibindo-se, sem suspeitar do Natal que já se aproximava. Os forasteiros? Ah, estes só se ocupam de seus misteres e nada sabem dessas coisas. Eu? Bem, eu ainda tenho a esperança de ser compreendida por esses velhos e serenos cães que, assim como eu, precisam conviver com homens e galos, ambos tão performáticos às vezes. Faz parte.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

PAMELA ANDERSON

 Foi há pouco mais de um mês. Era um desses dias em que a chuva despencava sobre Porto Alegre. Chuva assustadora, por conta da recente enchente de maio. Um casal de amigos meus seguia de carro para casa. Final de tarde, noite chegando. Com pouca visibilidade, alguma coisa em frente atrapalhava o trânsito na Av. Assis Brasil. Mais devagar, meu amigo viu que a "coisa" era um cachorro, vítima de atropelamento, com certeza, fazia pouco tempo. Ele parou o carro e desceu. Era uma cachorra de uns vinte quilos. Estava consciente, deitada de lado e com uma perna quebrada, com certeza, pela posição que mostrava. Ela não tinha como sair dali caminhando, pensou meu amigo. E, se ficasse, seria novamente atropelada. Por perto, ninguém parecia dar a menor importância àquilo tudo. Até havia um "dono" da cachorra acidentada, mas ele não quis saber de socorrê-la. Imperdoável omissão. Meu amigo não pensou duas vezes. Sorte dele ser forte, porque foi necessário erguê-la com cuidado do asfalto molhado. Socorrida, Pamela Anderson, como foi batizada depois, teve de ficar internada. Constatou-se que era muito velha, entre doze e quinze anos, e também muito fedorenta, gorda e com apenas quatro dentes inteiros na boca, sem falar na perna quebrada. Coisas da vida. Meus amigos assumiram a broca. No dia seguinte, radiografia, fratura confirmada e cirurgia prescrita. Foi enfaixada e, com alta provisória, levada para casa de meus amigos para aguardar a cirurgia que saiu em poucos dias. Foi feita a correção da fratura com colocação de uma prótese. Apesar de idosa, Pamela se mostrou forte e saudável. Fora a perna quebrada, nenhum problema de saúde. Tratamento completo, com antibióticos e anti-inflamatórios ministrados nas horas certas. Bem cuidada, a recuperação foi tranquila. Nenhuma complicação. Não tendo para onde ir, uma vez que o ex-dono não fez nenhuma questão de socorrê-la, Pamela permanece na casa dos meus amigos, com duas outras companheiras caninas com as quais ela implica. Chegou, tomou conta de uma das camas, rosnou para as duas "donas da casa" e foi ficando. Como é velha, não brinca muito. Dorme bastante, come e descansa. Passeia devagar todos os dias. Os olhos parecem cansados, por conta de uma catarata que já se inicia. Seja como for, o destino deu um jeito na vida da Pamela Anderson: ganhou um nome, ganhou roupas, uma cama quentinha, casa, comida, dois humanos que se dispuseram a cuidar dela em um momento difícil e duas companheiras para as quais ela rosna e resmunga. Enfim, o susto passou. A adoção não estava programada. Brinco com meu amigo que algum duende interpretou mal o desejo dele, que era o de adotar um pitbull grande, forte, de pelo brilhante e cara de mau. Veio a Pamela. Coisas do destino? Não sei. Particularmente, quando penso nessa história, me ocorre que a Pamela não sabe a sorte que teve. Ou sabe.