Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho levou-lho um dia, com poucos meses de existência, e ambos entraram a gostar dele. Não lhe conto o que a madrinha fazia por ele, desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia crédito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze anos da raça; a doença achou enfermeira, e a morte teve lágrimas. Quando entrar no jardim à esquerda, ao pé do muro, olhe, foi aí que o enterraram; e já não lembrava, a madrinha é que mo apontou ontem. Do Memorial de Aires, escrito ao melhor estilo de Machado de Assis.
Esta passagem comovente já foi postada neste blog, mas nada comentei a respeito. Em seu Memorial de Aires, Machado adota um tom introspectivo. É uma obra de memória, de observação e, principalmente, de reflexão sobre a vida cotidiana. Aires, amadurecido pela idade, relembra o passado com pinceladas de uma melancólica empatia. Nessa passagem, o cão não é só um animal, porque ele como que transcende o efêmero, o apequenado e prosaico cotidiano. A narrativa amorosa ensina-nos que mesmo o pequenino cãozinho "de nada" pode deixar uma marca profunda e duradoura na memória e na vida, o que reflete muito bem a atenção machadiana ao detalhes que se manifestam nos gestos mais rotineiros. O tema traz à tona a relação de cumplicidade entre os homens e os cães, que não é apenas a resultante de um convívio, porque consiste em uma troca genuína de cuidados e sentimentos. Machado descreve o cãozinho como alguém que mereceu amor, cuidados na vida e até lágrimas na morte. Essa relação é apresentada como algo natural, uma expressão verdadeira de humanidade.
Meu pequenino cão chamava-se Alex. Tinha registro e pedigree. Um lhasa apso, digno representante de sua linhagem. Discreto, nunca rosnou ou mordeu. Era solene e raramente latia. Como era o personagem principal do lar que iluminou, creio que jamais soube o que era rejeição. Nunca foi contrariado. Fazia o que queria e era o dono absoluto da casa. Tinha uma liberdade inegociável. Fazia o que queria, como queria. E nós, devotados súditos, submetíamos sem resistência à sua regência silenciosa. Por quase 14 anos foi o melhor e mais fiel amigo que eu tive.
Hoje vejo Alex em cada cãozinho que encontro e este pequenino cão de nada, tão machadiano, me traz Alex à memória, confusamente, porque não é uma questão de forma ou fundo, de tempo e espaço. Creio seja, talvez, a mais exata dimensão de uma grande saudade.
Imagem criada com IA
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